Sérgio Gouveia

Desconto pontualidade: ajuda ou atrapalha?

O incentivo à pontualidade certamente é bem-vindo. Mas oferecer desconto é a melhor saída? Entenda os riscos financeiros e jurídicos desse mecanismo usado para reduzir a inadimplência condominial

Por Sérgio Gouveia

14/11/25 12:32 - Atualizado há 16 dias


A inadimplência no Brasil alcançou níveis alarmantes em 2025, refletindo o agravamento da crise financeira das famílias.

Em agosto, mais de 78 milhões de brasileiros estavam endividados – um crescimento de 7 milhões em apenas dois anos – e o percentual de lares com dificuldades para honrar compromissos chegou a 30,4%, o maior patamar em 15 anos, segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic)

Esse é certamente um dos principais problemas para fechar as contas de muitos condomínios. Com frequência vejo erros de origem, onde a previsão orçamentária simplesmente desconsidera a existência de inadimplência.

O gestor calcula corretamente as despesas mensais (digamos que sejam R$10 mil), projeta as receitas em R$10 mil, mas esquece de incluir na conta aquela receita que historicamente não entra por conta dos que atrasam ou não pagam suas cotas condominiais.

Previsões orçamentárias com esse tipo de erro são como submarinos: podem até flutuar, mas foram feitas para afundar…  

Desconto pontualidade: solução para a inadimplência?

O que fazer diante desse cenário de inadimplência crônica? Um artifício bastante utilizado por muitos condomínios - inclusive por garantidoras - é o desconto pontualidade ou desconto antecipação.

A intenção é oferecer aos condôminos um incentivo ao pagamento pontual ou antecipado das cotas em troca de um desconto. A intenção é ótima; a forma, nem tanto… Essa é uma prática que pode trazer problemas ao condomínio, tanto por motivos jurídicos quanto por motivos meramente financeiros.

A conta não fecha

Há, basicamente, duas formas de oferecer o desconto pontualidade, e ambas apresentam problemas:

Caso 1: quando o valor pago antecipadamente é realmente inferior ao calculado na previsão orçamentária (desconto real).

Ocorre quando a administração do condomínio oferece um desconto sobre o valor da cota condominial caso o condômino pague até certa data antes do vencimento. Se for realmente um desconto sobre o valor corretamente calculado da cota condominial, isso é um problema.

E por quê? Vamos imaginar que o desconto é de 10%, e que todos do condomínio paguem antecipado. O condomínio receberia 10% menos de receita em relação ao projetado na previsão orçamentária, gerando déficit ordinário. É como se esse mecanismo criasse uma “inadimplência artificial”... 

Exemplo:

Valor da cota calculado na previsão orçamentária R$ 100
Valor cobrado se pago antes do vencimento R$ 90 (10% de desconto*)
Déficit R$ 10

 

 

 

* Percentual meramente ilustrativo

Em outras palavras: cria-se uma situação em que, quanto mais pessoas pagarem no prazo, pior para as finanças do condomínio. E tem mais: normalmente quem tende a aderir a esse tipo de desconto são justamente os pagadores pontuais, que pagariam em dia de qualquer jeito, com ou sem incentivo

Caso 2: quando o valor pago antecipadamente é o correto, e se pagar com atraso, o valor é muito mais alto do que com 2% de multa e 1% de juros a.m.

Nesse caso, o valor real da cota é aquele calculado na previsão orçamentária até a data do vencimento. Aí a administração informa que o valor “oficial” da cota ordinária não é aquele, e sim um outro arbitrado artificialmente bem mais alto, e que se o condômino pagar até o vencimento, o valor “tem um desconto”…

Exemplo:

Valor real da cota, calculado na previsão orçamentária R$ 100 (“com desconto”)
Valor da cota informado como “oficial” a ser cobrado R$ 120 (inflado em 20%*)
Valor cobrado se pago depois do vencimento R$ 120 (o “oficial”)
Se fossem cobrados apenas multa e juros legais R$ 103
Diferença de =  +R$ 17

 

 

 

                             

* Percentual meramente ilustrativo

Esse tal “desconto” não é desconto, é o valor correto! E o valor “oficial” nada mais é do que o correto + uma ameaça! E uma ameaça questionável na justiça por se tratar de punição dobrada (multa e juros + valor mais alto calculado arbitrariamente), que no jargão jurídico é conhecida como “bis in idem”, que em latim significa que o indivíduo sofreu uma dupla sanção por conta de um mesmo fato gerador.

Jurisprudência: não vale desconto pontualidade com multa "disfarçada"

Os tribunais vêm se manifestando há anos sobre o tema, e o entendimento majoritário é que só é lícita a concessão de desconto por pontualidade caso não se configure multa disfarçada e esteja prevista em convenção ou deliberada em assembleia.

O Código Civil vigente (Lei nº 10.406/2002) não trata expressamente do “desconto de pontualidade” em cotas condominiais. O que existe é a proibição de multa superior a 2% e juros moratórios de 1% ao mês, conforme o art. 1.336, §1º. Portanto, a lei não proíbe o desconto, mas também não o regula — deixando espaço para interpretação.

Contudo, o Projeto de Lei nº 5.385/2023, que altera o Código Civil (reforma em tramitação no Senado), pretende regular expressamente o tema. A nova redação proposta pelo art. 1.336 §1º-A autoriza a concessão de desconto por pontualidade, desde que:

Porém, como vimos acima em “A conta não fecha”, o Caso 1 corresponde ao item B acima, e o Caso 2 corresponde ao item C… E aí? 

Cuidados ao implementar o desconto pontualidade

Quer oferecer essa modalidade aos moradores do seu condomínio? Certifique-se que estes cuidados serão observados:

  1. Defina em assembleia um valor “oficial” das cotas condominiais - que será acima daquele calculado na previsão orçamentária - mas mantenha essa diferença de uma margem que possa ser considerada razoável, sob pena de poder ser denunciada como abusiva. Idealmente, inclua essa decisão na convenção;
  2. Certifique-se que o valor cobrado de quem paga antecipado é o valor calculado na previsão orçamentária, caso contrário, quanto mais pessoas aderirem a esse desconto mais longe o condomínio estará do seu equilíbrio financeiro.

Portanto, fique atento: medidas que visem a reduzir a inadimplência não podem ser apenas bem-intencionadas. Elas também precisam ser seguras e bem embasadas por serem financeiramente saudáveis e juridicamente válidas.

(*) Sérgio Gouveia é síndico profissional, administrador, especialista em finanças, palestrante com experiência corporativa de sucesso no mundo condominial. Mais de 20 anos de experiência como gestor e mais de 9 anos de experiência como síndico. Autor do livro "Finanças Para Síndicos" (ed. Bonijuris) e influencer com o perfil nas redes sociais @derepentesindico