A cidade que não vemos: o papel dos condomínios
Como os muros dos condomínios moldam nossa percepção urbana e por que fachadas ativas e participação em ações sociais para população vulnerável podem reabrir o diálogo entre dentro e fora
Quando observamos os condomínios a partir da rua, o que se impõe, na maior parte das vezes, são os muros. É necessário elevar o olhar para perceber os edifícios e apenas fragmentos da vida interna.
No percurso cotidiano, as quadras se apresentam como volumes contínuos e impermeáveis, compondo um ambiente pouco estimulante ao pedestre: calçadas deformadas para priorizar acessos veiculares, lixo acumulado, poucos espaços de transição e quase nenhuma abertura capaz de promover interação entre interior e exterior.
Esse modelo, consolidado sob o argumento da segurança e da privacidade, resulta em um tecido urbano fragmentado e pouco relacional. Ele reduz a vitalidade dos espaços públicos e neutraliza a experiência urbana, tornando quase invisíveis os fluxos e interações que caracterizam cidades mais vivas e democráticas.
Com o avanço do consumo digital, dos serviços sob demanda e do home office, cresce a sensação — confortável, porém equivocada — de que é possível viver quase integralmente dentro dos limites de um empreendimento privado.
Nos últimos anos, alguns projetos passaram a substituir muros por elementos transparentes, principalmente vidro, ampliando minimamente a permeabilidade visual. Essa solução gera uma interface menos hostil com a rua, mas o salto qualitativo ocorre quando a legislação urbanística estabelece diretrizes para que os pavimentos térreos dos edifícios sejam ocupados por fachadas ativas.
As fachadas ativas são frentes edificadas que mantêm aberturas, transparência, acessos e usos voltados para a rua. Em vez de muros ou empenas cegas, apresentam comércio, serviços, equipamentos públicos ou compartilhados, áreas de transição e circulação de pedestres integrada ao passeio.
Essa configuração garante vitalidade urbana, diversifica fluxos e qualifica o espaço público, promovendo segurança pela presença constante de pessoas — o chamado “olhar natural” sobre a rua.
Cidades como São Paulo, Curitiba e Belo Horizonte já incorporam parâmetros de fachadas ativas em zonas de adensamento ou eixos de transporte, reforçando a importância dessa interação na construção de uma cidade mais acessível e vibrante.
Um exemplo emblemático desse paradigma é o Edifício Copan, no centro de São Paulo: a passagem entre a Avenida Ipiranga e a Rua São Luís ocorre por um pavimento térreo permeável, sem muros, com circulação interna, comércio diversificado e uso contínuo.
Trata-se de um espaço privado de uso público que demonstra como a interação direta entre edifício e rua gera segurança, interesse e vitalidade. A presença de pessoas, os encontros fortuitos e os olhares trocados criam uma rede de proteção espontânea, muitas vezes mais eficiente do que barreiras físicas como gradis ou cercas.
Muros escondem realidade que não se quer ver: moradores de rua
Contudo, a cultura dos condomínios murados produz efeitos mais profundos do que a simples barreira física.
A ausência de relação visual e social com o entorno cria uma espécie de bolha perceptiva que nos distancia de realidades urbanas que não desejamos ver: pessoas que vivem nas calçadas, que recorrem aos resíduos como forma de sobrevivência ou que pedem auxílio nos semáforos.
Esse apagamento simbólico reforça um ciclo no qual os novos empreendimentos se tornam cada vez mais exclusivos, expulsando formas de vida urbana que não cabem dentro de seus perímetros privatizados. A rua, esvaziada de vitalidade, perde diversidade e presença humana, e a cidade se torna mais desigual.
Esse cenário, porém, pode ser transformado. A escolha consciente por projetos que valorizem a generosidade urbana, a permeabilidade, os usos mistos, as fachadas ativas e o desenho urbano inclusivo é um passo fundamental.
Enquanto condôminos-cidadãos, temos a possibilidade de influenciar o mercado imobiliário por meio das nossas decisões de consumo e de cobrança por melhores práticas urbanísticas.
E podemos ir além: como condomínios, condôminos ou empresas atuantes no setor também podemos contribuir com ações sociais com impacto direto na população de rua.
Um exemplo é o recém-lançado projeto Condomínio do Bem, uma iniciativa do advogado e comentarista Marcio Rachkorsky, que busca transbordar a solidariedade para além dos muros dos condomínios ajudando os vulneráveis atendidos pelos programas sociais do Padre Julio Lancellotti.
- Conheça o projeto Condomínio do Bem
Assim, contribuímos para a construção de uma paisagem urbana mais equitativa, segura, vibrante e socialmente integrada.
(*) Lígia Ramos é Arquiteta Urbanista e Bióloga, síndica profissional da D’Accord há 20 anos. Cuida de aspectos práticos do condomínio, como áreas verdes, gestão de pessoas, planejamento e comunicação.