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Convivência

Vida de porteiro

Saiba como é o serviço que é a cara dos condomínios cariocas

quarta-feira, 25 de novembro de 2015
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Porteiros contam suas histórias e singularidades da profissão que guarda a intimidade de milhões

De Realengo a um dos endereços mais famosos de Copacabana, o trajeto diário inclui um trem e dois ônibus. Mas o percurso de Severino Florença, de 52 anos, até a portaria do Edifício Chopin foi mais longo. Dois mil e quinhentos quilômetros de Jacaraú, na Paraíba, ao Rio, onde chegou aos 18 para o primeiro emprego.
 
A vaga no vizinho do Copacabana Palace veio cinco anos depois. Severino foi crescendo no “plano de carreira” do 1.782 da Av. Atlântica, o que inclui o cargo — são 23 funcionários no total, contando com lavador de carros — e o local de trabalho — sendo a portaria do Chopin a mais valorizada entre os três prédios do condomínio homônimo.
 
— Às vezes, a visita para o prédio Prelude fica meio chateada quando a gente explica que a entrada é ali do lado. A portaria do Chopin é mais valorizada, é o cartão-postal do prédio — conta.
 
O trabalho aumenta em dia de réveillon, quando os visitantes só entram com uma pulseira no braço, padronizada pelo prédio para inibir penetras nas festas de arromba. Mas fora a última noite do ano, a calmaria da portaria, decorada com quadros iluminados e piso de mármore, só era interrompida pelas visitas da atriz Dercy Gonçalves.
 
— Na calçada, ela já gritava: “Sai da frente seus merdas que a velhinha vai subir!”. Não tinha como anunciar — lembra ele, que jamais sucumbiu ao desejo de pedir autógrafo a um dos famosos que passam por ali, nem mesmo à moradora e atriz Maitê Proença, que envia, vez ou outra, “quentinhas” para a portaria. — Mas aqui qualquer visita é tratada do mesmo jeito. Pode ser quem for que tem que aguardar. É fazer o melhor de si para não ter problema.
 
A alguns quarteirões, na portaria do 194 da Barata Ribeiro, um minuto parece comportar mais “boa tardes” do que os 60 segundos dos ponteiros. O vaivém é incessante no edifício que fez fama com o seu número original, o 200, e traça novos rumos. Porteiro há 31 anos ali, o paraibano Luiz Domingues, de 69 anos, conta que o movimento só diminui depois da meia-noite, quando seis dos sete elevadores são desligados.
 
— Aqui é como em qualquer outro prédio. Não vejo nada demais. Briga de vizinho, suicídio. Mas tudo muito raro — assegura.
 
O gigante de 45 apartamentos por andar foi habitado por 2 mil pessoas no auge das manchetes policiais, nos anos 1970. Hoje, são cerca de 700.
 
— O máximo que acontece é cair uma cobra da mata atrás do prédio — garante o síndico Benedito Rodrigues, no cargo há 11 anos. — A maioria dos apartamentos naquela época era alugada. Hoje, a situação inverteu-se e o prédio melhorou.
 
Enquanto o condomínio mudava de perfil, a vida de Domingues também. Um segundo casamento aumentou o número de filhos de quatro para oito. O endereço mudou de Copacabana para Vila Isabel. O que se manteve igual mesmo foi o trabalho:
 
— O síndico do 180 me chamou para trabalhar lá, mas não quis. Aqui conheço o pessoal e o trabalho. Conheço bem o prédio e até tenho um projeto de reforma com cozinha americana que já fiz em vários apartamentos. Deixo tipo casinha de boneca — conta, acrescentando. — Mas para trabalhar aqui tem que ter paciência.
 
Ele é uma exceção à regra: casa e trabalho separam-se para além de alguns andares. A grande maioria desses profissionais, que somam quase 65 mil no Rio — o segundo maior contingente de porteiros e zeladores no país, perdendo apenas para São Paulo —, ocupa apartamentos funcionais. O espaço, atraente para a massa migrante do Nordeste embora localizado quase sempre em áreas pouco ventiladas, escuras ou diminutas, está na berlinda. Um projeto de lei da prefeitura que torna facultativa a sua construção em novos empreendimentos imobiliários nas zonas Sul, Norte, Portuária e no Centro está em tramitação. O intuito é simplificar e baratear o custo da habitação, mas a categoria, cujo piso salarial é de R$ 1.076,70, já se mobiliza contra.
 
Há quatro meses no Brasil e um como zelador de um edifício no Flamengo, o sírio Mohamed Nayef al Saleh, muçulmano sunita, viu na rotina profissional a possibilidade de um novo lar. As tarefas do dia são escritas em inglês pela síndica, de origem judaica. O porteiro-chefe, ex-bispo da Igreja Mórmon, supervisiona o trabalho e arranha algumas palavras na língua estrangeira.
 
— Na Síria, trabalhava como soldador de uma fábrica. No Líbano, onde estava há dois anos, em serviços gerais — lembra.
 
Mohamed, de 22 anos, chegou ao país com um amigo — três irmãs, já casadas, moram no Líbano, e um irmão, na Suíça. A intenção era entrar na Europa pela Itália, mas os planos foram frustrados.
 
— Fiquei preso quatro dias no aeroporto, sem comida e água. Disseram que não podiam me aceitar lá. E não era seguro voltar. Vim para o Brasil, onde tenho amigos — diz.
 
No prédio, ele faz serviços de pintura, recebe correios, abre portão e troca lâmpadas. Depois do expediente, à noite, prepara com os conterrâneos quitutes árabes para serem vendidos nas ruas de Botafogo no dia seguinte.
 
— A gente se entende um pouco. Ele tem mais boa vontade do que os brasileiros passaram por aqui antes — afirma Cícero Silvino Rodrigues.
 
— Esse prédio é uma Babel. Tem alemão, peruano, venezuelano e, agora, um sírio — completa a síndica Monica Nasseh Wegener.
 
Os Barbosa Muniz, de Itatuba, na Paraíba, são uma dinastia no Edifício Paissandu, no Flamengo. Primeiro veio o irmão mais velho, Daniel, hoje aposentado. Depois Dauro; Noemias, que não se adaptou à cidade e voltou; e Abinoel, o terceiro da família a ocupar o posto de porteiro-chefe. As irmãs Abigail e Sônia também deram expediente no prédio, como costureiras num ateliê de vestido de noivas que funciona num dos apartamentos.
 
— Os moradores foram conhecendo nosso trabalho e ficavam sempre tranquilos de contratar mais um da família — explica Abinoel.
 
A recorrência de Severinos e Raimundos, mais do que laços familiares, é explicada pela rede criada entre conterrâneos nordestinos desde os anos 1970, quando uma primeira onda de migração chegou às metrópoles para suprir as demandas da construção civil. As ondas subsequentes aconteceram no boca a boca.
 
— Na segunda leva, os nordestinos inseriram-se em funções de prestação de serviços. E passaram a viver uma situação dialética: estão na Zona Sul, melhoraram de vida, têm boas escolas para os filhos, mas não fazem parte daquele grupo social — aponta Rodrigo Carvalho, que pesquisou a inserção social dos porteiros de Laranjeiras e descobriu que 91% dos entrevistados obtiveram o emprego através da indicação de um amigo ou familiar.
 
Aposentado há dez anos, mas ainda na ativa, João Antônio Barbosa, de 64 anos, já tem endereço certo quando deixar o edifício no Jardim Botânico, onde cuida da portaria e dos jardins. Retornará para João Pessoa, deixando dois filhos na cidade.
 
— O Rio é uma cadeia. Na portaria, não tenho festa, não bebo, só trabalho. E como não posso morar no Jardim Botânico, vou morar perto do Jardim Botânico da Paraíba — diz ele, com formação técnica em jardinagem. — É uma área até melhor do que aqui, com menos aglomeração, poluição… Se fosse comprar casa aqui, teria que morar na favela.
 
O movimento de retorno às cidades natais deve fazer desaparecer em alguns anos uma espécie de “velha guarda” dos porteiros na Rua Uruguai, na Tijuca. Os anos passados numa mesma portaria fizeram com que alguns profissionais aprendessem a reconhecer até mesmo os hábitos de moradores dos prédios vizinhos. José Felix da Silva foi o primeiro a ocupar o edifício em que trabalha há 25 anos e até hoje ainda guarda, literalmente, as chaves de alguns apartamentos.
 
— Criei minha filha aqui, na festa de 15 anos todos os moradores foram convidados. O chato é trabalhar fim de semana e feriado — afirma Silva, que nas horas vagas organiza longas pedaladas com outros cinco porteiros “baluartes” da região.
 
A onipresença deles nas portarias remonta à tradição dos guardiões dos edifícios na fundação da cidade, como explica o historiador Nireu Cavalcanti:
 
— O porteiro sempre foi uma figura de destaque dentro da estrutura de trabalho do Rio. Todas as entidades públicas, colégios e instituições contavam com um guardião das chaves, que normalmente morava no local de trabalho, pois era o primeiro a chegar. A alfândega, que recebia todos os produtos do período colonial, também tinha o seu porteiro. A passagem para o edifício residencial foi natural.
 
Mas não sem atritos. Para o autor de “A casa e a rua”, o antropólogo Roberto DaMatta, a figura do porteiro “é o exemplo perfeito” do limite permeável entre o público e o privado.
 
— Ele fica nessa dobradiça entre a casa e a rua, e tem um sistema complexo de relações emocionais e de trabalho com diversos moradores — aponta. — Essas profissões domésticas, em que o trabalhador pertence de algum modo à residência do empregador, são uma anomalia. O que explica essa sobrevivência é o resíduo de uma sociedade escravista.
 
Da moradia ao cafezinho, a cordialidade entre condôminos e porteiros é para o psicólogo Fernando Braga, autor do livro “Homens invisíveis — Relatos de uma humilhação social”, uma forma de amortecer abusos possíveis dessa relação:
 
— O peso moral de se assumir uma profissão como essa costuma variar de acordo com a desigualdade social do lugar. Um faxineiro no Brasil é diferente de um na Suécia. Agora, a invisibilidade social, de forma geral, é idêntica.
 
Da terça-feira de 3 de junho de 1972, o mineiro José Lourenço tem duas lembranças: seu aniversário de 22 anos e sua estreia com a carteira assinada. Também foi seu primeiro dia no Rio. Veio na boleia de um caminhão de Juiz de Fora, saltou no Méier e, de lá, pegou um ônibus para a Rua General Glicério, em Laranjeiras, de onde nunca mais saiu.
 
— No sábado, teve uma festa no arraial onde eu morava e o meu irmão falou do emprego. No domingo, pedi permissão ao meu pai e na segunda já estava tirando a carteira de trabalho — lembra ele, que está escrevendo suas memórias e espera transformá-las em livro. — Cheguei ao prédio e nunca tinha visto um elevador.
 
Além das visitas à irmã em Irajá e compromissos no Largo do Machado, Lourenço pouco circulou pela cidade nesses 43 anos. O casamento, inclusive, foi fruto de uma paquera na rua.
 
— Se me deixar em Copacabana, me perco. Conheço mesmo é essa rua e esse prédio — resume José, que, com o malabarismo mineiro, contorna os humores dos moradores. — O porteiro tá aqui para apagar incêndio. Mas também não pode deixar o fogo queimá-lo.
 
A violência urbana é outra questão com que os porteiros precisam lidar. Márcio José Domingos aprendeu a vistoriar o prédio onde trabalha depois que um ladrão tentou pular o muro. Há um ano, criou uma conta no WhatsApp para alertar condôminos — de interfone quebrado a foto de invasor buscado pela polícia.
 
— Meu filho me ensinou a usar o “zap zap”. É uma comunicação mais direta com os moradores. Antes, tinha que colocar aviso no elevador e as visitas também ficavam sabendo dos problemas — explica.
 
Instituição nas grandes cidades brasileiras, a figura do porteiro já inspirou romance erótico, música, obra de arte. Autor de “Interfone”, gravada por Alexandre Pires (“Mas o porteiro é novo ele não me conhece/ Tá cheio de suspeita, tá desconfiado”), o compositor Altay Veloso diz que a ideia surgiu em conversa com um amigo, que não conseguiu entrar no prédio da namorada, pois o porteiro era novo:
 
— É uma historinha com início, meio e fim e as pessoas se identificam. Os porteiros fazem parte das lendas urbanas.
 
Os artistas Maurício Dias e Walter Riedweg levaram para a 24ª Bienal de São Paulo, que tinha como tema a antropofagia, em 1998, a instalação multimídia “Severinos, Raimundos e Franciscos”. A obra, parte dos acervos do MAM Rio, MAR e Centre Pompidou, em Paris, discutiu o canibalismo ético que rege as relações entre classes sociais na capital paulista.
 
— A geografia do Brasil pode ser detectada não só na fronteira entre os estados, mas nas classes sociais. Ser porteiro é uma profissão formal, existe controle, mas há também um canibalismo urbano. A falta do espaço privado desses profissionais é muito recorrente e isso se mostra na arquitetura da metrópole brasileira — aponta Dias.
 
Embora more com vista para a praia, Edson de Oliveira, de 48 anos, conta nos dedos as idas às areias do Leme. O apartamento, no último andar do prédio onde trabalha, ganha visitas todo réveillon.
 
— Os moradores cruzam a minha sala para ver os fogos na varanda. No dia seguinte, faço a limpeza e saio de férias para a Paraíba — conta Oliveira, que durante a semana divide as tarefas na portaria com incursões diárias à Ceasa para abastecer o sacolão que a mulher dirige.
 
A algumas portarias dali, Marcos da Silva, de 46 anos, tem seu refúgio na cobertura resguardado por lances de escada:
 
— O acesso não é muito bom. E o pessoal de idade não vai lá em cima.
 
Perto de se aposentar, ele diz que não sentirá muita falta da vista quando voltar para Sítio Pitombeira, também na Paraíba. A principal função do apartamento foi facilitar os deslocamentos a médicos para o tratamento da filha, com paralisia:
 
— Hoje em dia, pagar aluguel é difícil, ainda mais na Zona Sul. Vou me aposentar e ir embora, construir minha casa e dar vaga a outros que estão precisando.
 
Raridade numa profissão majoritariamente masculina, Sonia Maria Vale não dispensa flor e a caneca rosa de café na mesa de trabalho. Dos 25 anos vividos no prédio em Copacabana, 19 foram como doméstica e outros seis na atual função. Da faxina para a portaria, a chance de ter a carteira de trabalho assinada:
 
— Falei brincando com a síndica que eu iria para a portaria quando o Seu André se aposentasse. Até que um dia ela me ofereceu a vaga. Mas muita gente achava que eu não era capaz, inclusive a minha patroa. Portaria só se fosse homem. Depois isso mudou.
 
Sonia se divide entre o apartamento funcional no primeiro andar, com cama e armário, e um espaço no último andar, apenas com telhado, com cozinha, sofá e televisão. Ali, já viveu com dois filhos e quatro sobrinhos.
 
— Ela é a mãezona do prédio — diz o zelador e braço direito José da Silva.
 
Agora, véspera de Natal, Sonia vive a expectativa de arrumar a “casa”:
 
— O prédio é como minha família. Vou comprar material de limpeza para deixar tudo bonito.

Fonte: http://www.dm.com.br/

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